terça-feira, 12 de março de 2024

Como paramos no atoleiro do neofascimo?

A pedra do Muro de Berlim atingiu o entregador do iFood

A queda do Muro de Berlim, em 1989, marcou o fim da Guerra Fria, simbolizando a reunificação da Alemanha Ocidental e Oriental e precipitando o colapso do comunismo soviético. Em 1991, testemunhamos o fim da URSS e, simultaneamente, a Guerra do Golfo. Esses eventos marcaram a decadência da URSS e o estabelecimento dos EUA como a única superpotência mundial, demonstrando sua capacidade de agir conforme desejassem no cenário internacional, com um mandato que se estendia para Israel. 

A esquerda se viu preocupada, enquanto a direita celebrou a vitória, simbolizada pela hegemonia do modelo democrático liberal ocidental, e a autodeclarada chegada ao caminho que levava ao fim da história, como profetizou Francis Fukuyama, que depois renegou sua própria tese. Na sequência, a direita neoliberal emergiu como a corrente ideológica dominante no mundo, impulsionada pelo imperialismo da Pax-Americana e pelo aprofundamento do receituário do Consenso de Washington: mais arrocho e menos estado. 

No cenário internacional, o neoliberalismo, em conjunto, e em contradição, com o keynesianismo militarista estadunidense, causou um rearranjo do tabuleiro geopolítico. A reação palestina à ocupação de seu território por tropas israelenses, com o massivo apoio americano, de alguma forma confirmava a desintegração da URSS e o aumento do poder de Israel. As Intifadas se tornaram parte dessa reação, e a assinatura dos Acordos de Oslo se tornou inevitável, ainda que indesejável para o establishment mais a direita. O poder comunicacional norte-americano estava no auge, com a dominação completa das comunicações de massa.

A antiga ordem neocolonialista, também colapsou em outras regiões do planeta. As ex-colônias africanas começaram a se desestabilizar politicamente, num movimento que persiste até hoje, como o Genocídio de Ruanda. a Revolução dos Contras, a Invasão do Iraque, e a Guerra da Bósnia, também são resultados deste neocolonialismo, seja em sua vertente econômica, na guerra pelo petróleo, seja pela dominação de uma pretensa civilização judaico-cristã.

A União Europeia foi criada para contrapor-se ao poder centralizado dos EUA, mas nasceu com um problema intrínseco: todos os seus países eram subservientes aos norte-americanos. Contudo, a China vinha crescendo economicamente de forma discreta e começou a acelerar de maneira impressionante a partir de 1991. Mesmo com a Rússia aparentemente derrotada, o mundo parecia caminhar em direção à multipolaridade. A social-democracia começou a ganhar força nesse contexto, e o pêndulo político iniciou seu retorno do radicalismo de direita para o centro. A internet estava nascendo, ainda não era uma força comunicacional, mas as potencias ocidentais estavam com o controle da web e da tecnologia envolvida.

Após os ataques de 11 de setembro às Torres Gêmeas, os EUA iniciaram a Guerra ao Terror e invadiram o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003. Recuperaram o controle geopolítico demonstrando sua superioridade militar e amorteceram o ímpeto multilateralista por décadas, estabelecendo-se como a única superpotência mundial e líder absoluto dos países alinhados. A busca por uma dominação global absoluta culminou mais tarde nas Primaveras Árabes e nas Revoluções Coloridas.

Entretanto, de maneira discreta, mas constante, a China emergiu como a segunda maior economia mundial, adotando uma forma aparente de capitalismo de Estado. O capitalismo então, se firmou como a única ideologia vencedora, culminando em uma longa trajetória simbólica até a sua "gloriosa vitória final" desde a queda do Muro de Berlim.

Em paralelo a esse movimento geopolítico, desde a década de 70, o capital passou por um processo de financeirização, e, nos anos 2000, os bancos já representavam o ápice do capitalismo globalizado, impulsionados pela internet e pela abertura comercial. Nos anos 2000 a internet começou a ganhar relevância no campo da comunicação, e os grupos de periféricos, oprimidos e favelados enxergaram uma oportunidade de criar uma contracultura digital, por se tratar de uma rede distribuída e multipolar.

Em 2008 a internet já era um poder comunicacional, porém, ainda não determinante. A dinâmica de grandes plataformas e redes sociais já estava implementada, mas não era dominante. No entanto, a volatilidade das trocas digitais em nível global já estava instituída, e a economia mundial já estava interligada em um piscar de olhos. E o grande capital já exercia seu domínio sobre a internet.

Neste contexto chegou a crise financeira global, nascida no centro do capitalismo moderno, os EUA, e desmoralizou completamente o sistema bancário. Foi uma crise simbólica, pois até então o capitalismo era o vencedor ideológico e os bancos os campeões do capital, mas eles revelaram uma natureza fraudulenta, contrariando a expectativa de profissionalismo e meritocracia. A ilusão do mundo liberal autorregulado caiu, e a crise se espalhou rapidamente, causando uma recessão undial de grande impacto.

Esse momento foi crucial para entender o crescimento da extrema-direita em ámbito internacional, pois o modelo capitalista estava abalado, e surgia a questão: retornaríamos ao "antiquado" socialismo ou dobraríamos a aposta no capitalismo? 

A extrema-direita apresentou-se com todas as condições para oferecer uma solução rápida para a crise: respostas simples e diretas. Problemas econômicos? Abrir mercados e privatizar. Violência? Prender e matar. Questões sociais? Deixar que Deus guie.

Enquanto isso, a esquerda continuou com sua mesma fórmula, adotou uma abordagem mais elaborada, tentando explicar as causas da crise e como superá-la, semelhante ao que fazemos neste texto. Esse modelo de comunicação só poderia ser superado com o crescimento exponencial das redes sociais, um ambiente de comunicação rápida e direta. 

A internet, que inicialmente mimetizava a comunicação analógica, permitiu que a esquerda competisse com a direita, pois suas explicações ainda faziam sentido. No entanto, conforme a natureza da rede evoluiu para um rápido o fluxo digital e adotou o capitalismo de plataforma, com a preponderância do Google, Facebook, Amazon, etc, e a utopia de uma internet democratizadora da comunicação desvaneceu.

Paralelamente, a extrema-direita começou a se organizar digitalmente, de maneira rápida, fluída e objetiva, enquanto os movimentos de esquerda lutavam com o peso da história e a dificuldade de se adaptar. Enquanto a extrema-direita se construía dentro do mundo digital, a esquerda ainda não havia compreendido plenamente essa nova realidade.

Quando a extrema-direita percebeu a falta de limites e regulamentações nas redes, rapidamente explorou as brechas do sistema, resultando em escândalos como o da Cambridge Analytica, o Brexit, a eleição de Trump em 2016 e o consequente fortalecimento da extrema-direita mundial.

Atualmente, enfrentamos o paradoxo de a extrema-direita não saber como resolver os problemas, mas oferecer soluções simplistas, enquanto o campo progressista debate profundamente as causas, mas sem apresentar respostas simples. Esse dilema se reflete em toda a comunicação digital, pois a mentalidade progressista ainda não está alinhada às dinâmicas das redes sociais, e os que tentam se adaptar muitas vezes recorrem às táticas da extrema-direita.

O desafio se intensifica, pois os algoritmos favorecem o neofascismo, seja pela atração do discurso sensacionalista, seja pelo poder econômico dos indivíduos dispostos a financiar essa ideologia. Mas uma coisa é certa: os algoritmos estão promovendo conteúdos de extrema-direita, criando um ciclo vicioso onde o conteúdo extremista gera mais engajamento, e, para aumentar o engajamento, adere-se ao conteúdo extremista.

No fim das contas, o lucro nos levou ao atual paradoxo político, e o capitalismo de plataforma tornou-se a arena de disputa. Porém, esta arena não é neutra, e a mensagem da extrema-direita, por oferecer soluções imediatas, embora irracionais, circula com mais facilidade. Memes, reações e tendências se encaixam com dificuldade na linguagem progressista, mas fluem naturalmente na narrativa da extrema-direita.

Vivemos em um ambiente de guerras híbridas, onde a direita mundial está profundamente conectada e goza de amplo financiamento dos abastados, posicionando-se como anti-elite, apesar de serem serviçais do interesses desta mesma elite. Essa adequação é natural para quem escolhe o caminho mais curto, mais fácil e mais rápido, apesar de não levar a lugar algum, ou pior, a destinos indesejáveis.

Este cenário informacional nos conduziu à nossa condição contraditória atual, onde imigrantes votam no Trump, gays escolhem o Bolsonaro, negros brasileiros são eleitos pelo Chega em Portugal, e “autônomos” do iFood reclamam da regulamentação. E assim a pedra lançada lá do Muro de Berlim atinge em cheio o entregador do iFood no Brasil, que foi capturado pela teia da extrema direita no ambiente digital.

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