sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Distribuição do capital político após as eleições

Liberais e socialistas podem se decepcionar, mas a democracia burguesa funciona como um mercado de votos, revelado por Schumpeter. Em uma democracia ideal o debate entre projetos de futuro norteariam a distribuição dos votos no mercado, através de ofertas programáticas que os eleitores distinguiriam entre as realistas e as desejáveis.

Na democracia real e imperfeita em que vivemos diversos outros valores influenciam no mercado de votos, como interesse privado, tradição, preconceito, propaganda, modismo, crença, religião e, inclusive, propostas para o futuro do país. Nesta eleição, como em outras, todos os fatores se misturaram, e não é possível distingui-los de maneira exata, pois se misturaram no torvelinho das relações sociais.

O exercício que faremos não pretende explicar as complexas relações sociais em torno do voto, apenas traçar alguns "tipos ideais" que congregam votos e contribuem para o acúmulo de capital político, através do processo de mais-valia política, que não será analisado. Para simplificar, digamos que a mais-valia política pode ser entendida com a mera transposição do conceito econômico de Marx para o universo político.

Os tipos ideais de eleitores que identificamos são: o Conservador, o Social Democrata, o Esquerdista, o Desinteressado e o Indignado. Quem é familiarizado com a teoria Weberiana dos tipos ideais sabe que não se encontrará nenhum "tipo puro" andando pela rua, e que todas as pessoas mesclam diversos tipos,  possivelmente com algum deles sendo preponderante. O Ambientalista pode estar surgindo como um novo componente desta tipologia, mas por enquanto será considerado como um sub-tipo do Social Democrata.

Antes de prosseguir a análise, vejamos o resultado que sai das urnas, que é claro, mas de complexo entendimento, simultaneamente.

Dilma 35,09
Abstenção, Brancos e Nulos 25,19
Serra 24,4
Marina 14,46
Plínio 0,65
Outros 0,21

Vamos ver outra tabela, esta não censitária, mas sim amostral, que, no entanto não deixa de sinalizar a distribuição do capital político no país. A tabela a seguir representa a preferência por partidos no Brasil, segundo pesquisa IBOPE.

PT 27
PMDB 5
PSDB 5
Outros 4
PV 3
PDT 2
Não tem preferência 54

Agora vejamos as bancadas na Câmara dos Deputados por partido.
Partido Deputados %
PT 88 17,15
PMDB 79 15,4
PSDB       54 10,53
DEM 43 8,38
PR 40 7,8
PP 40 7,8
PSB 34 6,63
Outros 32 6,24
PDT 26 5,07
PTB 20 3,9
PcdoB 15 2,92
PSC 14 2,73
PPS 14 2,73
PV 14 2,73

Cabe dizer que o método de análise é altamente subjetivo e arbitrário, e não se pretende científico em nenhum momento. Observando as tabelas acima, podemos especular que:

. Lula sai menor das urnas do que se imaginava, pois a votação de Dilma foi a votação de um eleitorado fidelizado pelo PT ao longo de décadas. Dilma obteve 35% de votos, sendo que o PT é o partido preferido de 27% da população. Os outros partidos da coligação podem ter mobilizado 3% dos votos, sendo que Lula talvez tenha conseguido amealhar apenas 5% de votos fora do arco de alianças, sem contar com os seus votos já contabilizados na preferência pelo PT.

. Ao contrário do que se afirma, o capital político do PT é maior do que o de Lula, mesmo sendo este o principal acionista do capital político do partido. Isso os vincula de maneira irrevogável, pois se Lula tentasse sacar seu capital político, o PT "quebraria" antes do saque se completar. O capital político do PT se constrói em cima do perfil do Social Democrata e do Esquerdista, tendo como público principal a social democracia, que almeja a justiça social, e depois o esquerdista que almeja o socialismo.

. Houve uma troca no eleitorado petista, que perdeu votos na classe média e na elite e ganhou votos nas classes menos favorecidas. Os votos da classe média e elite que o PT perdeu migraram principalmente para Marina e são compostos por Sociais Democratas / Ambientalistas e Indignados.

. A votação expressiva de Marina Silva se deu amealhando quase a totalidade do perfil Indignado, que já foi capital político petista um dia e é composto por uma parte expressiva da elite intelectualizada. Parte deste eleitorado é composto pela "opinião pública" influenciada pela mídia. Marina também amealhou os Ambientalistas, que ainda não chegam a compor um estrato a parte da sociedade, pois muitos deles estão expressos nos Indignados e outros tantos nos Sociais Democratas. E por último, e não menos importante, Marina obteve o voto Conservador religioso, sendo a maior beneficiada da onda de boatos em torno do aborto e do ateísmo.

. Os Conservadores encolheram nesta eleição. Seus votos estão divididos entre Conservadores convictos - direitistas de diversas matizes, desde reacionários, passando por liberais clássicos e chegando aos religiosos - e entre a "opinião pública" formada pela grande mídia. Os partidos da direita se enfraqueceram enquanto legítimos representantes do pensamento conservador, apesar das expressivas vitórias nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A mídia ocupou em grande parte este papel político de agregar os conservadores dos mais diversos matizes.

. O PSDB e José Serra deixaram de representar um projeto político social democrata para o país, projeto este que bem melhor executado pelo governo do PT, e passaram a representar a direita mais conservadora e reacionária, tendo boa parte dos votos oriundo do preconceito de classes e outra boa parte oriundo da força da imprensa sobre a chamada "opinião pública", que expressa o principal capital eleitoral da grande mídia. O capital político do PSDB foi em grande parte tomado de empréstimo da mídia.

. A grande mídia surge como a grande força política conservadora e reacionária no país. Seu poder político está assentado na capacidade de apresentar e disseminar versões como se fossem realidade factual. Seu poder político é livre de amarras, pois a grande imprensa não é tratada na legislação como uma força política que disputa o poder na democracia, que participa do jogo político. Desfruta de um status de força superior que paira acima da democracia, muitas vezes se auto intitulando como o pilar central desta - ao invés do voto - e como seu principal fiador - no lugar do povo.

. O fato de não existir freios e contra-pesos ao exercício do poder pela grande mídia coloca ao Brasil uma distorção profunda no processo político democrático, verificado também em outros países. Este fato político é agravado pela inexistência de grandes grupos midiáticos de esquerda ou que apresentem de fato uma visão eqüidistante da realidade. O já folclórico "Senador(a) da RBS" é um ícone representativo deste processo.

. O volume de abstenção, votos brancos e nulos representam os Desinteressados, grupo que possui uma grande proximidade comportamental e/ou ideológica com os Indignados. Este grupo representou nestas eleições a segunda maior presença/ausência nas urnas, e é composto por pessoas que acham que a política não muda nada em suas vidas, ou que simplesmente acham que seus votos individuais não vão mudar nada na política. O "jogo baixo" e a "guerra suja" no processo eleitoral são os fatores que mais contribuem para o crescimento deste grupo, que aliena seu poder de decisão para outrem. Parte dos Indignados estão entre os que votam branco e nulo.

. Na Câmara dos Deputados recém eleita, a maior força política é a direita que, se somada como PSDB, DEM, PR, PP, e PSC, constitui cerca de 37% da casa. A esquerda, se considerada como PT, PSB, PDT, PCdoB e PSOL, congrega cerca de 33%, enquanto o centro (PMDB, PV, PTB e PPS), possui 30%. Esta divisão é muito imprecisa, pois em diversas ocasiões em que o PSB, o PDT e até mesmo o PT poderiam ser considerados como centro, assim como o PR e o PP. O PPS pode ser classificados como na direita também.

. A distribuição das bancadas no congresso nos leva a concluir que o centro é a maior força política do país, apesar de "formalmente" ser a menor. Mostra também o quando a base da aliança petista está calcada em partidos de direita, que não teriam o menor problema de migrar para a base política tucana em caso de eleição da oposição.

. O PSB ampliou sua participação no congresso, em parte recebendo votos tradicionalmente petistas, mas deixou de se apresentar como uma alternativa ao país sem candidatura própria, deixando papel exclusivamente reservado à Marina. O PSB apostou nesta tática para eleger uma bancada maior e 3 governadores, e teve relativo sucesso. Caso tivesse lançado candidatura própria, como estratégia combinada, sem sofrer ameaças de retaliação do PT, dividiria os votos de Marina e reduziria ainda mais a expressão do voto conservador. É possível que o partido saísse maior das urnas.

. O Esquerdismo saiu muito pequeno destas eleições, mostrando que os 6% da Heloísa Helena eram votos dos indignados, uma vez que Plínio teve uma grande exposição na mídia e ficou abaixo de 1%. No entanto Plínio foi apresentado pela imprensa como um entretenimento eleitoral e não como uma alternativa como foi Marina, e em certa dose Heloísa Helena, que recebeu parte do capital político midiático por representar a única alternativa aos indignados na ocasião.

Alguns corolários.

. O capital político do PT está em torno dos 25%, seu patamar histórico. Lula detém cerca de 10 a 15%, sendo uma parte dele depositado no PT e outra parte disponível para seu uso no mercado de votos. O capital político de Dilma é zero, mas tende a aumentar. Os 5% restante é dividido entre PMDB, PDT e PSB, sendo que os votos do PMDB ficaram mais difusos, ao sabor da orientação de caciques locais.

. O capital político conservador está entre 15 e 20%. Dentro desse capital político o de Serra é muito pequeno pois o PSDB tem cerca de 5% e o restante, que não se identifica com nenhum partido, seria oferecido à qualquer candidatura do campo conservador mesmo que não fosse a de Serra.
A mídia entra como sócia da candidatura com o restante dos votos para completar 24%. Estabelecemos de maneira arbitrária o capital da mídia emprestada ao Serra em 6%.

. O capital político de Marina é disperso, mas representa o segundo maior capital individual do processo, ficando em torno dos 5%. Cerca de 3% do seu total de votos pode ser atribuído aos Sociais Democratas / Ambientalistas. A soma de 8% corresponde ao patamar mantido pela candidatura antes da reta final. Na reta final talvez 4% de indignados votaram em Marina sob influência dos escândalos midiáticos e 3% de votos religiosos entre Conservadores e Desinteressados.

Conclusões:

. Será muito difícil a Dilma perder as eleições, uma vez que teria que perder votos no segundo turno, e a capacidade de transferência de votos da mídia parece já ter se esgotado no 1º turno. Apesar da clara preferência midiática pela candidatura de Serra, a candidatura não foi capaz de absorver a massa de votos movimentada pela mídia, indo os indignados ao encontro de Marina. Caso a mídia insista no uso de seu capital político na confecção de escândalos a hipótese mais provável é o aumento dos desinteressados, e não o aumento dos votos conservadores, uma vez que a alternativa aos indignados saiu do páreo.

. O PT tradicionalmente congrega mais os votos dos Sociais Democratas e Indignados do que o PSDB, sendo plausível supor que receberá ao menos 40% deste eleitorado que votou em Marina, o que já garantiria a eleição de Dilma. É provável que a mídia consiga conferir utilidade à parcela de Indignados sob sua influência e transferir votos para o Serra, mas não em número suficiente para mudar o resultado das eleições.

. O voto religioso tente a ser dividido entre os dois candidatos, uma vez que José Serra, quando Ministro da Saúde, regulamentou a prática de aborto na rede do SUS, e não possui uma relação com o setor profunda o suficiente para receber a totalidade dos votos religiosos depositados nas urnas. É necessário lembrar que nem todo voto religioso está no público Conservador, uma parte se identifica com a Social Democrata, notadamente os relacionados a Teologia da Libertação.

. Para vencer as eleições Serra teria que captar praticamente a totalidade do voto social democrata ambientalista, dos indignados e dos religiosos, o que é praticamente impossível.

. Marina Silva provavelmente irá tentar reservar seu capital político para si, não declarando apoio a nenhuma candidatura no segundo turno, uma vez que sua mais valia política é extraída através do discurso da "nova política", principalmente dos Indignados, que esperam de Marina uma posição acima do bem e do mal. Caso ela adote outro discurso irá decepcionar parte do seu eleitorado, e talvez se descapitalizar.

. Por coerência histórica Marina se posicionaria ao lado do PT, mas parece estar se movendo mais pelo pragmatismo eleitoral do que se poderia supor, com vistas em 2014. Parece não estar disposta fazer um discurso que seu eleitorado não queira ouvir, pois isso rebelaria sua base e dificultaria a extração de sua mais-valia política, que depende de uma postura que favoreça a idolatria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Compartilhar

Share